Monday, December 28, 2009

Os mitos morreram-me e fui eu que os degolei com as minhas próprias mãos.

Entrementes até ao fim de tudo reprimi a orla dos devires resguardados da involução dos meus parceiros. Dos meus aliados que deixei ali soterrados depois de uma batalha particularmente cruel e violenta. E dos meus egos que se contrastaram com outras crenças banidas do que sou.

Aquando do fim, abstive-me de jogos romanescos e alforriei as minhas iras, consumindo-as em nudez genuína. Por sua vez, o luto despontou por antecipação ao padecimento da dor que não cheguei a sentir. Foi uma ilusão esférica, engrenada em reflexões cadenciadas pela densidade da realidade suburbana, que se foi impingindo em busca de uma resolução luminosa.

Dos meus refúgios verteram-se fraudes que serviram intentos prestáveis. Mas que, pela fresta de uma certeza, logo se sumiram como demónios subitamente atraídos por uma vara de porcos que se precipitou no rio fluente de um lago superficialmente dotado de quietude. Por isso é que Já não os tenho aqui comigo.

As minhas mãos, do esforço da repressão, fundiram-se na barriga do meu corpo muito próximas do umbigo. Transformaram-se então os meus dois braços em asas de uma chávena de café por encher. À espera de ser aquecida pelo hálito de uma existência.

Friday, November 27, 2009

Atordoamentos

Chegados ao cocuruto do mundo, constatámos perplexos que o sobrado mantinha-se indemne ao rastejar das nossas vicissitudes. Era mais do que presumível, ou tornado como certeza, que as raízes arrastassem atrás de si fracções colossais de terra, revelando momentos vazios inscritos em expoente.

A vida, que nos cegou a quimera, e o relampejar de acontecimentos sem-fim-à-vista não permitiram satisfazer a visão dos pormenores, anunciado-se o móbil da evasão de nós mesmos.

Pé esquerdo atrás de pé esquerdo reconhecemos a acumulação de idealizações e de logros confinados em um mais um. Mesmo assim, ainda ateimámos peremptoriamente na nossa sabedoria conjunta, deificada por olhos nossos postos um no outro e absorta na acostumada coerência que nos permitiu que fossemos conseguindo repetir o medo até à exaustão.

Sunday, September 20, 2009

A velha do comboio

Enquanto lia no comboio, José sentiu-se observado por uma velha sentada mesmo à sua frente que reivindicava atenção através de um olhar azul, insistente, incomodativo até.
Combatendo tal impressão, José tentava, a todo o custo, manter-se ligado às linhas das palavras escritas, mas já se tinha rendido à teima daquela velha.
Fechou o livro e fitou-a severamente, como que a repreender uma criança pequena. Mas a velha não desviou o olhar por um segundo sequer. Pareceu a José até que nem pestanejava, limitando-se a manter um sorriso trocista em desafio e uma brandura seca nos olhos.
Isso incomodou-o ainda mais.
José não queria crer que alguém tivesse tal ausência de sensibilidade. As pessoas não deveriam mirar tão abertamente as outras. É inconcebível e uma falta de respeito. É de mau tom.
E a velha continuava, completamente alheia às reflexões conclusivas de José, que já se imaginava de mãos no seu pescoço.
Em meia hora de viagem de comboio José sentiu que envelhecia de desassossego. Surgindo questões em caudal descontrolado: sobre a sua aparência física, o passado e o futuro, a longevidade daquela velha e o que deveria fazer em retorno.
Enfim, confrontado pelo imponderável e pelo descontrolo sobre uma única acção externa que ganhava relevo substancial.
Mas que intenções. Que intenções tinha aquela velha para fitá-lo daquela forma?

Friday, September 18, 2009

O que sobra?

Sobram dedos. E sobram notáveis impressões, desumanizadas por uma gnose reparadora fictícia. Radiações convidativas e promessas de Judas foi também o que remanesceu das indeléveis e fátuas criptas da percepção.

E se Cronos continuar a gargalhar sussurros ante disposições vertidas em apatia? Só os olhos é que se moverão por inteiro em todas as respostas e dimensões possíveis sem se fazerem oscilar do alto do insondado.

Os Medos que metamorfoseiam a existência em destroço manter-se-ão opção singular. Assim como o destroço se materializará cinza que inundará todas as veias por onde o sangue é pulsado com mais força.

Teremos então a penitência vaticinada que fará embrutecer os dedos e as impressões, sobrelevando-se nas turbas de milhares de outros.

Thursday, August 20, 2009

Congeminações

Sucumbiram aos braços da doce alienação e encerraram mãos vermelhas que se antecipavam às audácias infames de olhos siderados por um amor imperceptível. Por um amor longínquo e descoberto em plenitude de um sentimento errático alentado.

Foi assim que as respostas incomunicáveis escassearam. Em comunhão com as contendas que se repartiram em jorros de origem-fim por rios de desventuras destarte recuperadas nas vidas enchentes, amparadas por surtos de visões paralelas nossas. Tuas e minhas.

Houve ainda transeuntes que calcorreavam vias de portentosos nichos de montanhas radiantes e ricas de claridade, nada mais predizendo senão o sustento de um roçar de lábios de desiguais criaturas que por ora se congeminam.

Thursday, June 18, 2009

Polifonia

Não existem segredos escondidos nesta casa.
Em vez desses segredos, circulam por aqui as verdades do coração que se exprimem em partilhas necessárias, opostas ao que se se revela protegido nos outros.
E nem os pudores são para aqui chamados. Ficam pendurados na porta de entrada enquanto lhes deitamos a língua de fora com um olho semi-aberto e outro semi-fechado. Expressão de máscara de ópera chinesa de desaprovação.
Porém, os sentimentos segregam-se e mantém-se a possibilidade de conversão às tais frestas onde se enfastia o monstro da dúvida.
Só que os medos, que chegam a assumir a forma horripilante de realidade antecipada, sacrificam-se nas janelas da nossa casa por onde entram os raios da luz sempre matinal. Na nossa casa. Tudo isto na nossa casa, onde as flores germinam ao acaso e sem temores estupidificadores que se lhes interponham. Onde os nossos mundos se encolhem quando cá entram e se expandem quando de cá saiem. Mais ricos. Mais verdadeiros. Mais sólidos.
Contra a sublimação de quaisquer mensagens, os gestos e as palavras são revelados em mímicas rodopiantes de sonhos a formarem-se. Que acenam em aprovação. “Sim, continuem!” E, enquanto tudo se vai desenrolando, a louça emparelha-se numa orquestra absurda, a vassoura troca o passo connosco em simultaneo com entes invisíveis de aparência física de fada do bosque, o aspirador suga a física do ar e as camas abrem-se para que nos acolhamos nelas.
Fechamos então os olhos em lençóis de branco límpido para que tudo fique negro, - tudo não, que continuam por lá os pensamentos. Só que são já duas da manhã e não se dorme nesta casa. As habitantes partilham as verdades do coração e sonham em voz alta e em polifonia harmoniosa.

Sunday, June 07, 2009

Mãos

Prontificas-te a despir o teu vestir vertido em tuas mãos sôfregas de coabitação. Como se divergisses íngreme em prol do incremento de uma ilustração despreocupada.

Reavivo-te. Eras sempre o primeiro a arrojar novo repto para qualquer dúvida adjectiva. Num momento específico, os teus passos ajeitaram-se em caminhos agonizantes por onde te desossas em inércias criativas e em estiramentos dançantes e cantantes e domesticados em espaços oblíquos e agrestes.

Possuís ainda essa contra-natureza trocista de luz tremeluzente. E continuas a consolar-te com pouco, com muito menos do que a sombra que és agora. Se é que ainda permaneces sombra. Menos do que isso, admito desconhecer. Mais, também não me recordo.

Deleitamo-nos com aquela diferença fundamental sobre um passado em comunhão. Agora enclausuras-te em risinhos nervosos e débeis e qualquer refutação implicaria um esforço excessivo de continuidade no sentido de uma objecção fervorosa. Para que servirá tal conjuntura de reais percepções em lacuna, senão para que seja vocacionada para uma partilha estilhaçada em tuas mãos.

São deleitosas as tuas mãos. Penso-o sem deixar de me Sentir instigado por estes ateares de fogueiras. Sou fogo-posto porque a tua ausência de intenção arde-me por dentro e nem sequer me recompensa com alguns daqueles beijos colhidos em casualidades por decifrar. Em rupturas cimentadas por astros-rei e satélites giratórios em torno do respectivo objecto de veneração.

Representamos assim todas as Eras e os escritos que se desaguaram em arruamentos sub-reptícios da nossa história. Pois que seriam os únicos. Todos os outros encontravam-se pejados de gente exposta à tua anuência oportuna.

Monday, May 04, 2009

Abril

Marinhava errático por aqueles montes desconhecidos da sua memória. Já ali estivera fisicamente, sabia-o bem, com a Avó já desaparecida faz mais de 20 anos. Mas por onde deveria seguir agora?

Noutros tempos tudo era colossal. Mesmo a sua própria Avó que, na realidade, não tinha mais de 1 m e 50 cm. Uma velha igual a tantas outras. Com o luto enrolado no corpo, dos pés à cabeça, já desde os seus 30 anos. De semblante enrugado, mãos calejadas de tanto, tanto, trabalho e esforço e com a voz cheia de riquezas em forma de histórias e de canto.

Lembrava-se agora ele que quando a sua Avó cantava, como que amanhecia no seu Coração. Assim como que amanheceu no coração do seu Avô, quando a cobiçou da primeira vez que depositou o olhar nela.

De pés descalços, tez morena, cintura estreita e com voz maviosa, a sua Avó dispunha-se a acartar cântaros de água para matar a sede de quem se matava a trabalhar pelos outros. Por uns poucos de tostões. E o seu Avô encantava-se mais e mais ainda com aquela que seria sempre a sua musa até ao fim dos seus dias.

Em retribuição, o Avô foi o seu companheiro. Trabalhou o que podia e o que não podia para que a sua família não passasse mal. Não bebia. Não lhe batia – coisa rara naqueles tempos. E foi sempre um bom homem. Só para ser o Homem da sua Avó.

Enquanto acarinhava a face suave do seu neto com gestos gentis que transbordavam das suas mãos calejadas, a Avó ía narrando estas e outras histórias. E, por vezes, parava de falar e entregava-se em silêncio às suas recordações mescladas de tristezas e alegrias, enquanto que ele, indiferente aos sentimentos de gente adulta e libertando-se das suas mãos, começava a perseguir um gato ou uma galinha, apenas com o objectivo em mente de lhes aplicar as já intemporais torturas infantis.

Hoje, o dia solarengo incentivava-o a que aventurasse por aqueles carreiros gravados por pés iguais aos dele, entre eles os da sua Avó e do seu Avô, ao longo dos muitos anos que foram passando desde que a terra é terra. Sentia-se livre como já não sentia fazia dias.

Parecia-lhe que tinham sido anos.

Nos últimos dias de Abril tinha chovido ininterruptamente e, desde que regressara à antiga morada da sua família, tinha a sensação que nunca mais voltaria a ver um dia de Sol. Embora reconhecesse agora que tinha exagerado. Em Abril, seriam sempre águas mil.

Vinha-lhe agora à memória ensinamentos recônditos que a sua Avó, conhecedora profunda destes dogmas agrícolas, lhe tinha transmitido. Embora fossem as suas canções e histórias de que ele queria recordar-se Hoje. Epicentro da infância e do toque das mãos de velha de que já não se encontravam ali perto dele para o confortar.

Friday, April 17, 2009

Em estado de querer sentir falta

Intumescidos ardores
Na sua personificação singela e embrutecida.
Tornam-se peles contra peles
E Olhos que se enxovalham
Num processo de coisificação em quereres excessivamente repetíveis.
Um, dois, três.
Quatro, cinco, seis.
Sete.
Oito, nove e dez solavancos nocturnos.
Pois aquele que possuía tal desejo genuíno de ardentes beijos e carícias,
Tomou por hábito esconder-se atrás de um biombo de dúvidas e inseguranças.
Por fim, em simultâneo aliadas do silêncio e das palavras.
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Foram os pés dela. Aparício sabia agora que apenas poderiam ter sido os pés dela a evitar o fim daquele amor.
Ele tinha já aquela percepção frustrada de que ela desapareceu da sua vida há apenas um dia. “Para nunca mais voltar”. Lia no papel que ela lhe passou para as mãos antes de fechar a porta do lado de fora da rua. “Porque nunca dialogamos e esta é a única forma de te aperceberes que não podes ficar calado durante meses seguidos, quando sabes perfeitamente que partilhas a tua vida com outra pessoa na mesma casa”.
Mesmo após ter lido e relido este excerto decisivo vezes sem conta, Aparício não conseguia decifrar esta avaliação externa sobre o seu próprio comportamento.
Ainda por cima ela já sabia que ele era assim mesmo antes de decidir que deveriam viver juntos. E ele que nunca escolheu, fez dele a vontade dela.
Por isso é que tinha ajuízado que ela tinha aprendido a lidar com esta característica. Porque as palavras, no entender de Aparício, sempre foram um desperdício e fonte de muitos problemas nas sedimentações relacionais entre as pessoas.
Assim, o silêncio era uma qualidade já orgânica nele mesmo. Seria um dom adquirido apenas para que pudesse conformar-se com o mundo. Entendê-lo.
Pois que tal compreensão profunda sobre o Mundo nunca nunca se revelou recíproca. O Mundo nunca o compreendeu e, por isso, foi sempre uma relação infeliz e desigual para Aparício, que nunca se rebelou contra tal desiquilíbrio.
Só que Aparício não poderá desinvencilhar-se desta relação, da mesma forma de como se desinvencilhou das palavras, por depender profundamente da energia que produz. Sem as relações, Aparício sabe que irá adormecer e a sua alma será condenada a residir numa bolha de letargia inquebrável.
Um dia depois, os síntomas de dependência física começavam a despertar em Aparício. Começava a sentir falta de observar o dedo indicador da mão esquerda dela. Aquele mesmo dedo que ela lhe apontava com tanta frequência nas últimas semanas. Também a boca. Aqueles lábios perfeitamente desenhados, sem ter recorrido a métodos artificiais, e que o acusavam vezes sem conta de não sentir nada mais para além de indiferença. E os pés dela. Que ele sabe que nunca irão inverter o percurso desenhado no dia anterior. Foram os pés dela que a obrigaram a ir-se embora. Concluiu ele. A culpa do fim do amor é dos pés das pessoas e não das próprias pessoas. Os pés é que são irrequietos e, depois de imporem exigências absurdas, decidem invariavelmente que não querem permanecer naquela casa.
Foi assim que Aparício decidiu que o Coração reside nos pés e não no peito das pessoas.

Wednesday, April 01, 2009

Réplicas

Existiram noites prolíferas de diamantes esmagados por milhõezinhos de réplicas diminuidas em pedrinhas esgotadas por vaidades nervosas e sintetizadas no plano atmosférico.

Se a inabilidade do acaso poderia ter mantido tudo uno, também serviria tal propósito a impermeabilidade dos sentidos. Do reagir ao sentir, apenas o desvanecimento continuaria a concretizar o escopo do Infinito.

E se as flores são belas (!), pois que nos parecem sempre iguais a si mesmas. Assim como as jovens – aquelas que só vimos num relance apressado - parecem ser jovens eternamente e as velhas – também as que conhecemos numa só oportunidade– serão sempre velhas sem nunca terem sido jovens. E apenas eu é que envelheço por estágios. Só eu é que nasci na minha memória porque não vi ninguém nascer. A não ser eu.

Porque sou jovem agora, reconheço que poderei a vir a ser velha depois.

É a estranheza de tal conclusão que me antagoniza contra os velhos sempre velhos e os jovens eternamente jovens. Que sabem ser sempre iguais a si mesmos. A todos sem excepção.

E porque é que quando se relatam pequenas histórias de meninas ingénuas e fugídias, estas meninas sucumbem para sempre perdidas num beco escuro da cidade.

Serão essas meninas que nunca trajaram saias rodadas com flores vermelhas e amarelas. Nem sequer sapatos de cetim. Que nunca pousaram um chupa-chupa caramelizado nos seus dentes luzídios e perfeitamente alinhados. Que nunca pentearam os seus cabelos louros em tranças que cheiram a morangos, panquecas recheadas de doce de gila e a calor do final de tarde de um dia de Verão.

Também são meninas que nunca se sentiram vocacionadas para jogar às escondidas. Oferecem-se aos ladrões de réplicas de diamantes que, oportunamente, vão roubá-los aos seus olhos brilhantes que, despojados de vaidades, os ofertam indiscriminadamente.

Somente por se julgarem para sempre captivos de jovens ingénuas e fugídias num momento rebuscado das minhas memórias.

Monday, March 30, 2009

Partilha Geracional

Existem dores transmissíveis porque interagem com a partilha geracional que, por sua vez, determina o modo de lidar com esses sentimentos incontornáveis. Que se alojam nos genes e destroem ou activam itens essenciais à sobrevivência neste mundo.

É então dada importância aos pés e às mãos, - elementos de acção corpórea -, consoante a importância que é atribuída às coisas deste mundo. Apenas porque existe uma relação fundamental entre o todo temporal, - que inclui o tempo primitivo das cavernas, o presente previsível (?) e o futuro indeterminado e expectável -, e a familiaridade do particular e da perspectiva subjectiva da influência e da interacção dos factores endógenos e exógenos nas nossas vidas.

Sem que nos apercebamos, o Todo Temporal interage com o Particular e vice-versa.

Quebremos então padrões infelizes. Quebremos essas continuidades que permitiram a sobrevivência dos nossos antepassados em determinadas circunstâncias em que, averiguada a taxa de sucesso sobre os resultados, permaneceram constantes no acervo familiar transmitido de geração em geração por diversas formas. Em milhares de anos de acumulação de pormenores que sustentaram sequências transitivas.

No entanto, se, no Particular, o último filho de uma família morre sem deixar descendentes, a dor que se torna intransmissível não seria partilhada se o filho não tivesse desaparecido. É o alfa e o ómega da partilha geracional.

Saturday, January 10, 2009

Alice

Alice tinha sido educada num ambiente rígido e subserviente. Por isso, desde que se lembrava de ser gente, tinha-lhe sido inculcado um sorriso discreto e submisso. E Alice tinha assim perdido o hábito de vociferar. De reclamar. De demonstrar pensamento.
Com o avançar do tempo, Alice transformou-se no ralo de protecção das pessoas que iam entrando e saindo da sua vida. Sem nunca abdicar daquela expressão facial traduzida em sorriso simétrico que as pessoas interpretavam invariavelmente como enfado e superioridade.
Aliás, sem excepção, os homens que dormiam com Alice sentiam-se aviltados e feridos no seu orgulho. Mesmo nas posições mais degradantes dela.
O escárnio seria aceitável, não fosse o silêncio.
Um dia, Alice deixou-se prender sem se aperceber. Se antes desconhecia qualquer sentimento para além da indiferença, por breves instantes, com Ele, pensou entender todos os sentires excessivos: amor; pequenez; realização; prazer; insegurança; ódio; amor.
Nele, Alice reconheceu-se. Partilhavam as mesmas características. Mesmo as particularidades físicas de olhos rasgados esverdeados, pele de alabastro, cabelo muito escuro, nariz aquilino, magreza excessiva e cento e setenta e cinco centímetros de altura.
Era um reflexo dela e não se sabia preparada para ser confrontada consigo mesma.
Foi por isso que Alice cobiçou alcançar outras emoções e expressões faciais plagiando o seu irmão gémeo perdido nos confins de uma vida diferente.
Os anos passaram e, numa manhã, Alice acordou e sentiu-se real outra vez. Tinha perdido e recuperado drasticamente o controlo no espaço das vinte e quatro horas precedentes.
Situava-se geograficamente no chão da sala e não se lembrava se tinha passado ali a noite porque tinha perecido perante o que tinha ocorrido ou porque não tinha tido forças para chegar à cama.
Por um segundo, Alice omitiu na sua mente tudo o que tinha acontecido na noite passada. Depois da sofreguidão. Depois da tempestade e da disputa pela sobrevivência.
Só que Alice não podia negar que tinha cometido um crime. Um homícidio quase-passional.
Ainda desgastada física e mentalmente, deslizou para o sítio onde tinha deixado o corpo do seu primeiro amante a sério. Para a casa de banho onde ele jazia irreconhecível.
Ela sabia bem que o tinha cortado em pedaços numa raiva cega que tinha o objectivo de lhe retirar aquela similitude gémea que tinha com ela.
Alice não se sentia indisposta. Sentia-se inerte no chão fleumático de azulejos quadrados pretos e brancos onde se podia jogar xadrez com peças humanas. Onde ela própria tinha feito um Xeque-Mate à vida dele.
Apenas a saliva lhe aquecia a face. O sangue já tinha coagulado na roupa e nas suas própias mãos e, mesmo assim, continuava a pulsar de adrenalina por entre os sulcos que compunham as impressões digitais dela.
O sangue escorria livremente e deixava a sua marca permanente no espírito de Alice.
Ainda não se tinha apercebido, mas Alice começava a recuperar o sorriso originário.
A cabeça dele tinha sido colocada em cima do tampo da sanita. E, de olhos abertos, parecia comunicar com ela em expressão dolorosa de decepção e de espanto. “Porque é que me fizeste isto?”, questionava-a. De entre muitas outras, era um exemplo de expressão que ela nunca tinha conseguido reproduzir. Tentava, mas tinha falhado.
Era essa a diferença maior entre ele e Alice. Alice reconhecia que apenas seguia os passos dele na concretização das suas próprias emoções. Mas Alice era apenas uma cópia ordinária dele.
Apercebendo-se no cenário macabro, Alice tentava lembrar-se e descrever, detalhadamente e em voz alta, os procedimentos seguidos entre a dissipação da vida dele e a entrada num sono sem sonhos dela. Mas apenas lhe acorriam à mente flashbacks de gritos e de faca a rasgar a carne.
Dentro da banheira encontrava-se o tronco decepado e, nos quatro cantos da divisão, tinham sido depostos os membros superiores e inferiores. Braço direito no canto superior direito, braço esquerdo no campo superior esquerdo, perna direita no campo inferior direito e perna esquerda no campo inferior esquerdo.
Ele agora ocupava todo aquele espaço. Tinha crescido até à imensidão de 3 metros elevados ao quadrado.
Alice pegou na cabeça dele, elevou-a ao nível da sua e deu-lhe um beijo com expressão “olhos rasgados ternos”. Sentia que ele correspondia apaixonado e subjugado. Quando se afastaram, ele tinha mudado de expressão. “Perdoo-te”. Dizia ele. “Perdoo-te, mas tens de sentir empatia por mim”.
Alice, de sorriso discreto e submisso plenamente reconquistado, após ter sido resguardado durante aqueles anos da relação de homem-mulher, depositou cuidadosamente a cabeça dele no mesmo sítio e movimentou-se para fora daquela casa.