Saturday, January 10, 2009

Alice

Alice tinha sido educada num ambiente rígido e subserviente. Por isso, desde que se lembrava de ser gente, tinha-lhe sido inculcado um sorriso discreto e submisso. E Alice tinha assim perdido o hábito de vociferar. De reclamar. De demonstrar pensamento.
Com o avançar do tempo, Alice transformou-se no ralo de protecção das pessoas que iam entrando e saindo da sua vida. Sem nunca abdicar daquela expressão facial traduzida em sorriso simétrico que as pessoas interpretavam invariavelmente como enfado e superioridade.
Aliás, sem excepção, os homens que dormiam com Alice sentiam-se aviltados e feridos no seu orgulho. Mesmo nas posições mais degradantes dela.
O escárnio seria aceitável, não fosse o silêncio.
Um dia, Alice deixou-se prender sem se aperceber. Se antes desconhecia qualquer sentimento para além da indiferença, por breves instantes, com Ele, pensou entender todos os sentires excessivos: amor; pequenez; realização; prazer; insegurança; ódio; amor.
Nele, Alice reconheceu-se. Partilhavam as mesmas características. Mesmo as particularidades físicas de olhos rasgados esverdeados, pele de alabastro, cabelo muito escuro, nariz aquilino, magreza excessiva e cento e setenta e cinco centímetros de altura.
Era um reflexo dela e não se sabia preparada para ser confrontada consigo mesma.
Foi por isso que Alice cobiçou alcançar outras emoções e expressões faciais plagiando o seu irmão gémeo perdido nos confins de uma vida diferente.
Os anos passaram e, numa manhã, Alice acordou e sentiu-se real outra vez. Tinha perdido e recuperado drasticamente o controlo no espaço das vinte e quatro horas precedentes.
Situava-se geograficamente no chão da sala e não se lembrava se tinha passado ali a noite porque tinha perecido perante o que tinha ocorrido ou porque não tinha tido forças para chegar à cama.
Por um segundo, Alice omitiu na sua mente tudo o que tinha acontecido na noite passada. Depois da sofreguidão. Depois da tempestade e da disputa pela sobrevivência.
Só que Alice não podia negar que tinha cometido um crime. Um homícidio quase-passional.
Ainda desgastada física e mentalmente, deslizou para o sítio onde tinha deixado o corpo do seu primeiro amante a sério. Para a casa de banho onde ele jazia irreconhecível.
Ela sabia bem que o tinha cortado em pedaços numa raiva cega que tinha o objectivo de lhe retirar aquela similitude gémea que tinha com ela.
Alice não se sentia indisposta. Sentia-se inerte no chão fleumático de azulejos quadrados pretos e brancos onde se podia jogar xadrez com peças humanas. Onde ela própria tinha feito um Xeque-Mate à vida dele.
Apenas a saliva lhe aquecia a face. O sangue já tinha coagulado na roupa e nas suas própias mãos e, mesmo assim, continuava a pulsar de adrenalina por entre os sulcos que compunham as impressões digitais dela.
O sangue escorria livremente e deixava a sua marca permanente no espírito de Alice.
Ainda não se tinha apercebido, mas Alice começava a recuperar o sorriso originário.
A cabeça dele tinha sido colocada em cima do tampo da sanita. E, de olhos abertos, parecia comunicar com ela em expressão dolorosa de decepção e de espanto. “Porque é que me fizeste isto?”, questionava-a. De entre muitas outras, era um exemplo de expressão que ela nunca tinha conseguido reproduzir. Tentava, mas tinha falhado.
Era essa a diferença maior entre ele e Alice. Alice reconhecia que apenas seguia os passos dele na concretização das suas próprias emoções. Mas Alice era apenas uma cópia ordinária dele.
Apercebendo-se no cenário macabro, Alice tentava lembrar-se e descrever, detalhadamente e em voz alta, os procedimentos seguidos entre a dissipação da vida dele e a entrada num sono sem sonhos dela. Mas apenas lhe acorriam à mente flashbacks de gritos e de faca a rasgar a carne.
Dentro da banheira encontrava-se o tronco decepado e, nos quatro cantos da divisão, tinham sido depostos os membros superiores e inferiores. Braço direito no canto superior direito, braço esquerdo no campo superior esquerdo, perna direita no campo inferior direito e perna esquerda no campo inferior esquerdo.
Ele agora ocupava todo aquele espaço. Tinha crescido até à imensidão de 3 metros elevados ao quadrado.
Alice pegou na cabeça dele, elevou-a ao nível da sua e deu-lhe um beijo com expressão “olhos rasgados ternos”. Sentia que ele correspondia apaixonado e subjugado. Quando se afastaram, ele tinha mudado de expressão. “Perdoo-te”. Dizia ele. “Perdoo-te, mas tens de sentir empatia por mim”.
Alice, de sorriso discreto e submisso plenamente reconquistado, após ter sido resguardado durante aqueles anos da relação de homem-mulher, depositou cuidadosamente a cabeça dele no mesmo sítio e movimentou-se para fora daquela casa.