Sunday, December 12, 2010

enclausurados os olhos, tomas sentido de uma voz que teve origem num desejo em catarse singular. a voz que mesmo antes de existir já almejava a uma, à tua!, existência independente do acto compulsivo de viver. e essa voz que se encontra alojada no teu âmago não sai de forma nenhuma pelos orifícios principais que cumprem a via normal da comunicação.
por tudo isto, consegue agigantar-se ao transitar pelo corpo inteiro ao ponto de sentir que tem capacidade para dilatar poros, decompor-se em pequenas mensagens parciais de sentido para finalmente chegar à superfície e apavorar os transeuntes que se cruzam muito perto de ti, com os seus pequenos universos e mentiras que dão lugar a verdades que se complementam harmoniosamente com as tuas.

Friday, September 03, 2010

C. procurava rejuvenescer através de gestos e de palavras que segurassem o corpo de M. num momento instantâneo e perfeito. Mas M. teria uma alma própria que poderia contrariar as suas intenções. E C. precisava de pouco menos do que uma alma singular. Precisava de fazer desaparecer os cabelos cor de prata e de regressar a um lugar seguro da sua vida, perdido num nicho da sua vida adulta, uma vez que, independentemente de tudo o que pudesse ser sentido, antevia um final muito próximo para si mesmo. Para amanhã ou para daqui a 20 anos. Não importa.
E aquela versão da música que lhe despertou os sentidos tantas vezes, na sua juventude, e que lhe chegava aos ouvidos impingida pela força do vento que também lhe fustigava o corpo acumulado de tantas outras vivências? Como é que seria possível que, naquele preciso momento precioso que o Universo lhe concedia, aquela música se materializasse ali.
Apesar de profundamente inquieto pelo momento que se compunha na sua existência e pelos seus próprios sentimentos que brotavam de uma fonte que ele não sabia localizar dentro de si, cuidava C. que M. soubesse de tudo. Que se apercebesse que o Tempo só traz dor e outros sentimentos de igual carga individualista. C. tentou fazer compreender tudo isso a M. de uma forma suave, para não a assustar. Mas M. pediu-lhe para que a levasse daquele sítio para outro mais agitado e pejado de pessoas.
O vento e o tom da voz dele começavam a assustá-la, na mesma proporção daquele abraço que se tinha enrolado à volta da sua cintura e que não era parte de um gesto inadvertido, mas sim tornado consciente por via de um intuito. Desapontado consigo mesmo, C. concedeu a M. a liberdade física por que ela ansiava e daí por diante não teve outras expectativas para si mesmo a não ser que o envelhecimento se tornasse pacífico, porque todos aqueles gestos e palavras não seriam nada mais do que um estrebuchar dos resquícios de uma juventude já perdida para ele.

Thursday, August 19, 2010

o entardecer precipitou ansiedades nocturnas que, subitamente, sem que quaisquer razões pudessem ser ficcionadas, deixaram de abster-se para que as tonalidades desvirtuadas pela melancolia-adágio brotassem de uma resistência de registo insondado.
depois, o estupro da rotina exteriorizada em paz dissipou-a em alegria incontida e a noite deixou de nos trazer o medo e a comiseração. e a noite já não se importa com o as coisas do nada. nem com nós mesmos.
e nós. nós reavivámos a noite até torná-la dia.

Sunday, July 11, 2010

Dando-se por achada, a mulher acoitou-se num casulo edificado pela conformação que lhe usurpou os sentidos. Os movimentos dos braços de trás para a frente sustentaram a precariedade de um equilíbrio que havia sido a ausência de voz e de espaço neste mundo. Lugar onde ela pressentiu nunca vir a pertencer como evidência derradeira de que cada parte sua, ou aparentemente sua, achar-se-ía no domínio de um Sonho.
Achando-se confinada, os feitos da mulher consumaram-se na ausência de registos escritos e narrados. Porém, o alcance da verdade não seria passível de materialização por repetição mnenómica do evento pretérito. Qualquer que fosse. Nem seria recuperada pelo regresso do Sonho, produzido ad eternum por uma vontade debelada em alento amparado.

Friday, July 09, 2010

Ausentam as palavras da memória, mas não os gestos. Esses já se repetem no quotidiano, esquecidos no reportório do dialecto da nossa presença face-a-face. Nem precisamos de irmos para além disto. Basta-nos o sintético, o analítico e o contrário da semântica. Palavras para quê, se se movem apenas para preencher necessidades que já se encontram saciadas. Necessidades do ego que se imiscuem no ouvido e que se exteriorizam através das palavras. E excesso de palavras gera ainda mais excesso. Foi por isso que a memória fez uma triagem das memórias e fez ausentar as palavras.

Sunday, June 06, 2010

Aconteceu

Os acasos de um passado venturoso sobreviveram em talhe de uma recordação regida por uma caminhada através do labirinto brumoso que entretanto apartou-se de nós. E expedimos certos e seguros nas nossas convicções que deixaram de ser repartidas em razão de um futuro que ainda não chegou a existir.

Mas somos dois afinal. Somos dois a partilhar agora uma manhã-luz que aconteceu. Que já se reconstrói depois de horas infinitas passadas noutro espaço da realidade que quisemos evitar.

Mas aconteceu e ainda somos dois.

Saturday, May 08, 2010

O Fado da Foz

Amor
Se quiseres iremos à Foz
Dar um beijo
E um longo abraço apertado
Entre nós os dois

Amor
Se não formos à Foz
A solidão não se esquecerá de afogar os nossos quereres
As nossas vontades mais urgentes
No rio que lá desagua

Amor
Não te peço para irmos à Foz
Pois a noite desfaz-me no caminho
Se for ao desengano sozinha sem ti
E se não puder dar-te um beijo e um longo abraço apertado

Fado do Silêncio

A percepção engastada num vértice reaccionário
Não debilitou o corpo que avança
Contra a desventura emancipada
Contra a maré contrafeita

São entoações silenciadas
Que perseguimos
Que ressoam cá por dentro

As mãos que degelaram com a comoção
Escoaram em pensamentos que decifram
A harmonia da terra seduzida
Por movimentos fortuitos nossos

São entoações silenciadas
Que perseguimos
Que ressoam cá por dentro

E se uma rotina de despedida
Vulgariza-se no homem
Vence o entendimento que nada vale
O arrepender do afastar-me de ti

São entoações silenciadas
Que perseguimos
Que ressoam cá por dentro

Monday, April 05, 2010

Feérica percepção semântica
E redondo engano esmoído
De confundir o querer
Com o pretender ser
Uma concepção embebida na espécie gentil de Amar.

Friday, March 05, 2010

O homem insubmisso

Quando a sua sombra assomou-se ao fundo da rua, o receio colectivo aninhou-se fortuitamente nas presenças que estavam lá para presenciar.

O homem caminhava sem pressa. Sem necessidade de lá chegar antes de todos os outros, pois era ele a peça central que iria vaticinar o fim das expectativas e, por essa razão, não havia pressas que implicassem quaisquer antecipações.

Bastava uma palavra ou um gesto para que tudo se precipitasse para esse fim já bem delineado na sua mente, lugar onde ele deixava discorrer os seus movimentos e das ocorrências do futuro, assim como a reacção das presenças que estavam lá para presenciar e os acontecimentos que se seguiriam.

Ouviu uma voz que identificou como sua a responder aos chamamentos da sua filha. “Pai! Pai!” Chamava-o em desespero enquanto que as mãos, que nem ele nem ela conheciam, a prendiam e a maltratavam. Aquilo tudo obscureceu os seus pensamentos, antes tão claros e vocacionados para um único propósito seu.

Ele avisou as mãos: “vocês não toquem nela”. A sua filha tornou-se então carvão em brasa incandescente que as mãos tiveram de largar de imediato. A sua filha, o único propósito da sua vida até àquele dia, correu então para junto de si, mas não o abraçou ou lhe disse qualquer palavra amável. Apenas anunciou: “Pai, eu não sei porque é que o fizeste, mas vou caminhar junto de ti”.

Não se ouvia uma única palavra nem se pressentia qualquer reacção. Por instantes, ao homem pareceu ser uma entidade divina ao invés de ser um condenado. Pai e filha avançavam no meio das pessoas que lhes abriam caminho em direcção àquele que lhe pareceu o mais respeitável da cidade, e começou a falar. Mas ninguém parecia entendê-lo. Nem mesmo a sua própria filha.

O homem encheu-se de desespero. Queria explicar. Queria dizer o que corria nos seus pensamentos, mas a língua proferia uma enxurrada de palavras ininteligíveis. Palavras que não eram as suas, mas daqueles que o tinham usado para assassinar o outro homem, que nunca tinha visto na sua vida e quem nem sequer lhe tinha feito algum mal.

Agora também era presença que presenciava pois quem por ele falava dominava a sua vontade e as suas palavras novamente. Em acto de desespero ele dominou a sua língua e pediu àquela gente que o sacrificasse, que o degolasse, pois poderia vir a fazer mal a muitos outros. Ninguém se compadeceu dele. Começaram todos a fugir por onde podiam, pois não suportavam o medo de se encontrarem próximos do que lhes era desconhecido.

Só a filha permaneceu junto dele. Pegou na sua mão disse-lhe: “Meu pai, a tua existência já não é deste mundo. O meu amor por ti leva-me a isto.” Segurando firmemente numa faca que trazia escondida no alforge, desferiu três golpes perfeitos no coração do homem, que desfaleceu nos braços dela com um sorriso de triunfo. Estava finalmente livre.