Friday, March 05, 2010

O homem insubmisso

Quando a sua sombra assomou-se ao fundo da rua, o receio colectivo aninhou-se fortuitamente nas presenças que estavam lá para presenciar.

O homem caminhava sem pressa. Sem necessidade de lá chegar antes de todos os outros, pois era ele a peça central que iria vaticinar o fim das expectativas e, por essa razão, não havia pressas que implicassem quaisquer antecipações.

Bastava uma palavra ou um gesto para que tudo se precipitasse para esse fim já bem delineado na sua mente, lugar onde ele deixava discorrer os seus movimentos e das ocorrências do futuro, assim como a reacção das presenças que estavam lá para presenciar e os acontecimentos que se seguiriam.

Ouviu uma voz que identificou como sua a responder aos chamamentos da sua filha. “Pai! Pai!” Chamava-o em desespero enquanto que as mãos, que nem ele nem ela conheciam, a prendiam e a maltratavam. Aquilo tudo obscureceu os seus pensamentos, antes tão claros e vocacionados para um único propósito seu.

Ele avisou as mãos: “vocês não toquem nela”. A sua filha tornou-se então carvão em brasa incandescente que as mãos tiveram de largar de imediato. A sua filha, o único propósito da sua vida até àquele dia, correu então para junto de si, mas não o abraçou ou lhe disse qualquer palavra amável. Apenas anunciou: “Pai, eu não sei porque é que o fizeste, mas vou caminhar junto de ti”.

Não se ouvia uma única palavra nem se pressentia qualquer reacção. Por instantes, ao homem pareceu ser uma entidade divina ao invés de ser um condenado. Pai e filha avançavam no meio das pessoas que lhes abriam caminho em direcção àquele que lhe pareceu o mais respeitável da cidade, e começou a falar. Mas ninguém parecia entendê-lo. Nem mesmo a sua própria filha.

O homem encheu-se de desespero. Queria explicar. Queria dizer o que corria nos seus pensamentos, mas a língua proferia uma enxurrada de palavras ininteligíveis. Palavras que não eram as suas, mas daqueles que o tinham usado para assassinar o outro homem, que nunca tinha visto na sua vida e quem nem sequer lhe tinha feito algum mal.

Agora também era presença que presenciava pois quem por ele falava dominava a sua vontade e as suas palavras novamente. Em acto de desespero ele dominou a sua língua e pediu àquela gente que o sacrificasse, que o degolasse, pois poderia vir a fazer mal a muitos outros. Ninguém se compadeceu dele. Começaram todos a fugir por onde podiam, pois não suportavam o medo de se encontrarem próximos do que lhes era desconhecido.

Só a filha permaneceu junto dele. Pegou na sua mão disse-lhe: “Meu pai, a tua existência já não é deste mundo. O meu amor por ti leva-me a isto.” Segurando firmemente numa faca que trazia escondida no alforge, desferiu três golpes perfeitos no coração do homem, que desfaleceu nos braços dela com um sorriso de triunfo. Estava finalmente livre.